01/08/2019

O Tio “Malata”: Como meu tio, Mauro, tentou me transformar em colorado

Che! Não tem como não fazer uma 'gauchada'. Já notaram que o RS é o único estado no Brasil que tem dois times disputando Brasileirão, Copa do Brasil e Libertadores, simultaneamente, neste exato momento? E já notaram que só Porto Alegre e Buenos Aires tem dois times disputando Libertadores? Vou aproveitar o momento para publicar um texto revelador sobre como meu tio, Mauro, tentou fazer eu trocar de clube, de Grêmio para o Inter...
O Tio “Malata”

Como meu tio, Mauro, tentou me transformar em colorado

Quando eu nasci, meu tio, o mais jovem dos irmãos do meu pai, tinha 14 anos. O nome era Mauro, ganhou o apelido “Malata” porque meu irmão, quando pequeno, não conseguia pronunciar o nome dele corretamente. Então, todos entraram na brincadeira, o apelido pegou, e era tio Malata prá cá e tio Malata prá lá. Ele gostava muito dos sobrinhos e também de futebol. Era colorado. Torcedor enlouquecido de amor pelo clube. Após os almoços de domingo na casa da vó Lira, disputávamos partidas de futebol de duplas à sombra das árvores, no pátio, eu, meu irmão, ele e meu pai. Estas partidas sempre terminavam, estranhamente, empatadas. Mais tarde, o tio Malata montou um time de futebol de salão (como chamávamos o futsal, na época) da família e disputávamos jogos com times da vizinhança, nas quadras das praças, primeiro na Azenha, depois nos altos da Medianeira, dois endereços onde morou minha avó, próximos ao Estádio Olímpico, que eu frequentei por toda minha vida. Grandes histórias tenho do tio Malata para lembrar. Era um sujeito diferente. Eu diria, sui generis.
A vó Lira morou muitos anos na rua José de Alencar, a poucos metros do Largo dos Campeões no mítico estádio do Grêmio, onde coloquei os pés pela primeira vez antes de completar 6 anos de idade, em 1964, levado pelo meu pai, gremista de carteirinha. Meu avô Antônio, torcedor do lendário Renner teve dois filhos homens, meu pai gremista e o tio Malata, colorado. A filha menina não ligava para futebol. Quando o Renner fechou as portas, o vô Antonio ia ao estádio Olímpico com o filho gremista e netos, também gremistas. Os almoços de domingo eram divertidos, menos em dias de Grenais decisivos, em respeito à vó, e todos ficavam mais comedidos e menos inflamados. Naqueles tempos, era comum ver-se torcedores de Grêmio e Inter misturados e, nos estádios, havia muito equilíbrio na divisão dos espaços entre torcedores que repartiam a geral em duas metades iguais. No centro agrupavam-se torcedores misturados, famílias e amigos, em geral, que iam juntos aos jogos. Os mais radicais iam se colocando atrás das goleiras. Nos anos 1967/68, nos famosos Torneio Roberto Gomes Pedroza, popular Robertão, desenhava-se os esboços do que chamamos, hoje, de campeonato brasileiro e os jogos do Grêmio e Inter eram em rodadas duplas no Olímpico.. Em 69, o colorado inaugurou o estádio Beira-Rio e, no Grenal, uma tremenda briga entre jogadores deu início à radicalização e fanatismo entre as torcidas, que, a partir de 72-73, começaram a ser separadas por cordões de isolamento e policiais.
Pois eu era um garoto que frequentava o estádio desde muito pequeno, levado pelo meu pai. Tinha o costume de guardar carros no pátio da casa da minha avó, fechava o cadeado do portão e, em poucos metros já estava na arquibancada de cimento. Era uma rotina. Iniciaram os anos 70, meus pais se desquitaram (era o nome da separação dos casais antes de existir o divórcio) e meu pai já não tinha mais tempo para ir comigo ao estádio nas tardes de domingo, e a zelosa vó Lira ficava aflita de ver o neto ir sozinho, pois os fanáticos e radicais torcedores já começavam a dar sinais de existência e, muitas vezes eu tinha que me contentar com a transmissão na voz grave dos narradores pelas ondas da amplitude modulada do enorme rádio Telefunken que minha avó tinha em cima da geladeira, sem disfarçar a decepção de ter que atender um pedido da vó, para não ir ao estádio.
O tio Malata, recém-casado, morando na casa ao lado, ficava chateado de ver o garoto magrelo sentado na varanda dos fundos, com cara de poucos amigos, e teve a ideia de acompanhar o sobrinho nos jogos. Colorado, impôs regras: era melhor contar para meu pai mais tarde; eu teria que acompanhá-lo também a jogos do Inter, quando o Grêmio estava fora de Porto Alegre; o tio não usaria camiseta e não torceria pelo Grêmio, e o mesmo valia para o sobrinho com relação ao Inter. Também combinamos que a flauta era livre, ao sair do estádio, nunca dentro.
Assim foi, mas eu não percebi o plano dele, de transformar o sobrinho em colorado, para sacanear o irmão, coisa que ele me revelou, uns vinte anos depois. E fomos, juntos, à vários jogos da dupla Grenal. Até em Grenais. Se meu pai não ia, o tio Malata era o parceiro. Alguns colegas de escola, gremistas, achavam estranho porém, iam junto, no estádio do Grêmio. Outros, colorados, me viram no Beira-Rio, nunca trajado ou comemorando, no máximo, ficando em pé quando saia um gol. Pude ver grandes partidas e grandes jogadores do Inter. A esperança daquele tio colorado nunca aconteceu e ele desistiu da ideia de mudar a cor da camisa do sobrinho quando a seleção da França, que estava fazendo excursão na América do Sul, jogou amistoso contra o Inter, no Beira-Rio, numa noite quente de verão, em 1971, e ganhou por 3x1. Eu tinha 12 anos e meus olhos brilharam quando vi as camisetas azuis do time francês entrando em campo e, num dos gols, não me contive e comemorei socando o ar, diante de uma plateia espantada. Naquele momento, o meu amigão, tio Malata, desistiu de tentar mudar o clube do coração do sobrinho. Ele chegou a me falar, na hora da saída, ao final do jogo: - Tua alma é mesmo gremista, guri! Parabéns!
Depois disto ainda fomos a vários jogos juntos, de um ou de outro time. O respeito ao combinado continuou valendo. Ele foi morar em outra cidade, teve filhos e netos, colorados e gremistas. Quando faleceu já tinha visto o Grêmio e o Inter ganharem o mundo. Entre nós sempre valeu a regra do respeito e da flauta. Mas ele tinha um sonho que não realizou: Queria ver um Grenal decisivo num Campeonato Brasileiro. O resultado que ele imaginava? Era 5x5 com “os dois times declarados campeões após mais de trinta cobranças de pênaltis sem definir o desempate”. Imagino como ele estaria vibrando com a perspectiva de termos, num só ano, Grenais semifinalistas na Copa do Brasil e decisivos na Libertadores.

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